Uma lei contra a paz

No início de 2008, quando Obama iniciou seu governo e suas tentativas de mediar um acordo Israel-Palestina, o primeiro-ministro Netanyahu declarou que isso era secundário. Importante era  o problema das armas atômicas que o Irã estaria desenvolvendo.

Foi o primeiro round da luta entre os dois chefes de estado, vencido por Netanyahu pois o problema da Palestina continuou na mesma e o Irã, graças principalmente aos EUA, sofreu sanções da ONU. Isso apesar da IAEA, naquele tempo dirigida por El Baradei e imparcial, declarar que não havia indícios da existência de um problema nuclear iraniano.
Agora, a história se repete.
No momento em que os palestinos pedem à ONU que sejam reconhecidos como estado independente, mesmo sofrendo pressões de Obama para que não fizessem isso, vazam, suspeitamente, informações de um novo relatório da IAEA, agora sob nova e menos imparcial administração,  que alardeavam provas categóricas de que o Irã teria mesmo um programa militar.
Ao mesmo tempo, o FBI revela uma conspiração para matar o embaixador da Arábia Saudita, possivelmente planejada por altas figuras da Guarda Revolucionária do Irã, mas, na verdade, muito pouco plausível.
Em seguida, completa-se o festival de vazamentos. Desta vez do ministério de Israel, onde Netanyahu estaria pregando a guerra santa contra o Irã, com sucesso cada vez maior. Mobilizam-se logo vários esquadrões dos “deixa disso”, em Israel e nos EUA. E o governo de Israel não diz nem sim, nem não para manter a tensão.
Nesse contexto,  a Câmera dos Representantes dos EUA faz jus à definição que faz dela o jornalista e ex-agente da CIA, Philip Giraldi: “O melhor Congresso que a AIPAC (lobby judaico-americano) pode comprar.”
Seu Comitê de Relações Exteriores aprova um projeto que é um exagero de servilismo à AIPAC e ao “premier” Netanyahu, que deve inspirá-la. É o Iran Threat Reduction Act ( “ Ato de Redução da Ameaça do Irã”), que na secção 601, subsecção c, estabelece: “Nenhum pessoa trabalhando para o Governo dos Estados Unidos pode contatar ,de forma oficial ou  nãooficial, com qualquer pessoa…que seja um agente, funcionário que seja subordinado ou esteja prestando serviços como representante do Governo do Irã.”
Em outras palavras: ninguém mais fala com o Irã. Contatos diplomáticos são proibidos com uma única exceção: quando não fazer contatos poderia “causar uma ameaça fora do comum e extraordinária a vitais interesses da segurança nacional dos Estados Unidos.” Nesses casos, o Presidente dos EUA teria de fazer um requerimento ao Congresso, 15 dias antes da data em que deveria se realizar o contato em causa com os iranianos. Caberia ao Congresso aprovar ou não a solicitação presidencial.
Esse incrível projeto, se aprovado e sancionado por Obama, será um tiro de canhão, ou melhor de míssil com ogiva nuclear, disparado contra a paz. O caminho diplomático para se chegar a bons termos com o Irã ficará bloqueado. Os EUA só poderão tratar com o governo de Teerã na base do pau, ou seja, ameaçando, impondo sanções e , afinal, bombardeando. O caminho das negociações será uma hipótese “tirada de cima da mesa”.
Por mais boa vontade que a gente tenha, é necessários admitir que o Congresso americano deseja a confrontação: ou sanções que liquidem a economia iraniana e ponham os aiatolás de joelhos ou, o que muitos congressistas prefeririam, a guerra.
O Almirante Mullen, ex- Chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, que está mais para falcão do que para pomba, várias vezes insistiu na importância de haver contatos entre EUA e Irã.
Ao retirar-se do seu cargo,ele declarou: ”Não temos conexão com o Irã desde 1979. Mesmo nos dias mais sombrios da Guerra Fria, nós tínhamos ligações com a União Soviética…Se algo acontecer, é virtualmente assegurado que poderemos não ver as coisas certo, que haverão erros de cálculos que seriam extremamente perigosos naquela parte do mundo (Oriente Médio)…Penso que abrir qualquer canal (de comunicação) seria espetacular.”
Apesar de não haver relações diplomáticas EUA Irã desde 1979, tem havido contatos entre os dois governos, através de funcionários de nível inferior em temas como o combate a drogas, o contrabando, os terroristas Salafi, a cooperação para combater os talibãs e pela libertação dos 3 andarilhos americanos. Com a nova lei, nada disso teria sido possível.
Outro grave problema é que o Congresso, depois de fechar as portas para a diplomacia agir nas questões iranianas, pode muito bem entusiasmar-se e estender a mesma proibição para contatos com Cuba, Coréia do Norte, Venezuela e todos quantos ousarem se opor  ao império.
Há também aspectos institucionais a considerar.
O Presidente dos EUA perde poderes e atribuições que lhe são próprios, conferidos pelos “pais da Pátria” na Constituição que elaboraram (na verdade, eles já se acostumaram a terem seus princípios desrespeitados). O manejo da política externa sempre coube ao Executivo, só nos casos de declaração de guerra é obrigatória a aprovação do Legislativo.
Tem sido assim desde que os Estados Unidos são Estados Unidos. E Jefferson, Hamilton,Madison e Tom Payne, entre outros luminares do passado, determinaram assim por fundadas razões.
Tirando a política externa das mãos do presidente, desequilibra-se a balança dos 3 poderes em favor do legislativo e , consequentemente, enfraquece-se a democracia americana.
Por essa lei, para buscar soluções para o problema do Irã, Obama passa a ser ator secundário. Não poderá cumprir sua promessa de campanha de tratar diretamente com Ahmadinejad. Aparentemente, Hillary Clinton deveria estar furiosa pois também terá suas funções de Secretária de Estado diminuídas. Para mim, é possível que ela esteja até satisfeita, não vamos esquecer que em debate contra Obama na campanha pré-eleitoral, ela condenou contatos diretos dele com os astuciosos iranianos, pois poderia ser enganado e usado por aquela gente .
Se a necessidade do presidente pedir licença à Câmara para reunir-se com iranianos é humilhante e ridícula, coloca-o em posição subalterna. Se o Congresso disser “não” por mais que ele ache imprescindível encontrar os aiatolás, terá de abaixar a cabeça e aceitar.
Pior é o prazo de 15 dias. Se a necessidade de contatos for imposta por uma crise que exige soluções urgentes, o prazo dos 15 dias poderá ser excessivo e, antes que finde, a crise terá explodido, criando uma situação capaz de atingir seriamente“ vitais interesses da segurança nacional dos Estados Unidos”.
Se esse prazo vigorasse quando da crise dos mísseis em Cuba, poderia ter provocado uma guerra nuclear pois o tempo total que durou aquele episódio foi de apenas 13 dias. Bombas atômicas estariam cruzando o mundo der um lado para o outro, enquanto os senhores congressistas esperavam passar o prazo de 15 dias, avaliando  se poderiam ou não autorizar o Presidente a procurar resolver diplomaticamente o problema.
Difícil separar esse belicoso projeto das maquinações de Nethanyahu e de sua extensão americana, a AIPAC.
Provavelmente, ele temia que nem a conspiração do vendedor de carros usados, por sua escassa credibilidade, nem o altamente discutível relatório de Amano, furado como uma peneira, iriam render muito.
Apesar dos brados furiosos e das ameaças ferozes que vieram de Washington a Berlin, fazendo escala em Londres e Paris, a China e a Rússia bloquearam novas e mais pesadas sanções contra o Irã. Saiu apenas uma condenação do complô, sem referir-se a seus autores, na ONU e uma declaração, expressando preocupações com o programa nuclear iraniano, na reunião dos Governadores da IAEA.
Mas Netanyahu tinha uma carta na manga: o Congresso americano. Segundo o respeitado colaborador do New Yorker Seymour Hersh (Prêmio Nobel de Jornalismo), a AIPAC fez intenso lobby pela aprovação do projeto anti-Irã. E ,como sempre, foi muito eficiente, especialmente porque as eleições são no ano que vem e os congressistas precisam de financiamentos.
Sempre assertivo, o Congresso apresentou um projeto agressivo que , basicamente, pretendia duas coisas:
-arrasar a economia iraniana pela proibição das empresas americanas negociarem com qualquer empresa estrangeira que tivesse relações de negócios com o Banco Central do Irã. O que atingiria pesadamente as indústrias de petróleo e gás do Irã, vitais para sua economia;
-impedir acordos de paz com o Irã que só poderiam vir através de negociações diplomáticas. O projeto só podia proibir os diplomatas americanos, é claro,  mas , sem eles, dificilmente de poderia chegar a uma solução negociada com os iranianos.
O primeiro objetivo ficou comprometido porque Obama e o Ocidente sabendo que , havendo uma crise muito séria no setor petrolífero iraniano o preço do petróleo subiria para 200 ou mesmo 300 dólares, o que seria arrasador para as economias americana e européia.
Haverá novas  sanções americanas e européias, mas dificilmente pesarão muito na balança. Índia, China, Rússia e Paquistão são os principais parceiros comerciais do Irã e não dão muita atenção à gritaria ocidental.
Quanto ao segundo objetivo, tem duplo alcance: sem a participação da diplomacia americana os europeus não se sentirão á vontade para discutir, aprovar ou rejeitar proposições iranianas.Terão a toda hora de pedir a opinião de Obama, o qual, por não ter participado das reuniões, poderá ser levado aos “erros de cálculo” de que fala o Almirante Mullen.
Com isso, o caminho diplomático fica cheio de obstáculos e acaba degenerando em mais incompreensões, mais  sanções, enquanto o tempo passa, e o prestimoso Amano vai suprindo  os Governadores da IAEA de informações cada vez mais alarmantes.   Até se chegar a um impasse. Que poderá ser deflagrado por algo assim: o Irã, segundo a AIEA, está prestes a produzir suas primeiras bombas nucleares. É coisa de dias, não dá mais tempo para sanções, negociações, diplomacia.
Só há uma solução: bombardear.

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