Por fim, justiça para os Mau Mau.

Nos anos 50, o Reino Unido enfrentou o maior desafio no seu império colonial.

Foi no Quênia, quando o movimento Mau Mau lutou pela independência do país.

Para as autoridades inglesas e a imprensa, tratava-se de uma força maligna, selvagens sanguinários que, sob influência do comunismo, promoviam ações bestiais.

Era conveniente para os interesses do colonialismo pintar como monstros quem se opunha à sua dominação.

Os rebeldes tinham seus motivos.

Através de desapropriações, o governo da colônia, durante o século 20, usurpou 28.000 km2 de terras dos nativos, especialmente das férteis regiões Central e do Vale do Rift.

Os principais prejudicados foram os kikuios, a maior etnia queniana, que perderam imensas áreas, adjudicadas pelo governo a colonos europeus.

Em 1948, enquanto um milhão e 520 mil kykuios possuíam 5.200 km2 de terras, apenas 30 mil colonos ingleses possuíam 30 mil k2, ou seja, seis vezes mais.

Em 1952, o movimento Mau Mau iniciou uma revolução pela independência do Quênia, exigindo “terra e liberdade”.

A maioria dos kikuios o apoiaram.

Graças à sua hábil política de “dividir para reinar”, os ingleses conseguiram jogar contra a insurgência parte das demais etnias do Quênia.

Na luta, que durou até fins de 1956, ambas as partes cometeram graves violências.

Os Mau Mau mataram 1.819 africanos fiéis ao governo, havendo ainda centenas de desaparecidos que podem também ter sido vítimas deles . Foram mortos também cerca de 2.000 soldados e policiais do governo, 32 civis europeus e 26 asiáticos.

A repressão inglesa à insurgência foi devastadora.

As forças de segurança adotaram uma estratégia baseada na punição coletiva. Todos os quenianos que viviam numa zona rotulada de emergência, eram considerados culpados até provarem sua inocência.

150 mil pessoas da etnia suspeita foram presas numa rede de campos de concentração, os chamados Gulags britânicos. Delas, 90 mil foram torturadas, mutiladas ou executadas, segundo a Comissão de Direitos Humanos do Quênia

Em nenhum outro lugar do império britânico a pena de morte foi aplicada de maneira tão indiscriminada. O total de execuções foi duas vezes maior do promovido pelos franceses na revolução da Argélia.

O governador sir Evelyn Baring chegou a assinar um decreto condenando à pena de morte todos que tivessem feito o juramento dos   Mau-Mau.

As violências físicas foram complementadas com ordens de trabalho forçado- punindo comunidades inteiras, multas coletivas e confiscos de terras e de gado. Em 1954, dezenas de milhares de cabeças de gado foram tomadas dos seus donos africanos e jamais devolvidas.

Em 1963, Londres concedeu independência ao Quênia.

Por incluir em posições chave ex- colaboradores dos ingleses e homens de negócios, o novo governo manteve os Mau Mau fora da lei.

Em 2002, isso mudou: os Mau Mau foram oficialmente considerados heróis da independência. E a Comissão de Direitos Humanos do Quênia procurou ouvir antigos membros, que haviam sido castrados ou torturados de outras maneiras.

Revelou-se  então, publicamente, as violências praticadas pelo exército da metrópole.

Foi instaurado um processo contra o governo inglês na Corte Suprema de Londres, exigindo indenizações às vítimas.

No decorrer do processo, alguns historiadores chamados como peritos descobriram um grande arquivo de 8 mil documentos da era colonial, que o Foreign Office tinha conservado escondido  por décadas.

Os papéis secretos mostraram que altas autoridades coloniais autorizaram normalmente torturas e espancamentos de suspeitos nos campos de concentração e que ministros do governo de Londres estavam a  par de tudo.

Em 1954, num dos poucos processos movidos contra os torturadores, um juiz de Nairobi, Arthur Cram, comparou os métodos dos interrogadores aos da Gestapo.

Na correspondência entre as autoridades do Quênia e o Foreign Office, foram reportados numerosos assassinatos e estupros por militares ingleses e alguns casos particularmente dramáticos como uma criança africana “queimada até a morte”e  o defloramento de uma menina.

O governador Baring estava consciente da extrema brutalidade das torturas que incluíam  espancamentos por vezes até a morte,  prisão solitária, privação de alimentos,  castração, sovas de chicote,  queimaduras, estupros,  sodomia e introdução forçada de objetos no anus.

Tudo foi mantido cuidadosamente em segredo.

O Procurador-Geral no Quênia, Eric Griffith-Jones, depois de alterar as leis para permitir violências, avisou o governador Baring: “Se nós vamos pecar, vamos pecar silenciosamente.”

Os documentos  descobertos testemunham de maneira incontestável a crueldade de um império colonial, que se apresentava como vanguarda da civilização.

Não havia como contestar os fatos. E o governo inglês acabou concordando em pagar indenizações a 5.228 veteranos sobreviventes do movimento Mau Mau.

Willian Hague, o ministro do Exterior, admitiu as culpas inglesas, perante a Câmara dos Comuns: ‘O governo inglês reconhece que os quenianos foram sujeitos a torturas e outras formas de maus tratos nas mãos da administração colonial.”

E concluiu: “Torturas e maus tratos são violações abomináveis da dignidade humana que nós publicamente condenamos.”

Na mesma ocasião, Hague informou que o Reino Unido colaboraria na construção em Nairobi (capital do Quênia) de um monumento em homenagem aos insurgentes vítimas de torturas na era colonial.

Condenados como terroristas, perseguidos e massacrados, os Mau Mau acabaram absolvidos, mais do que isso, honrados pela História.istória.História.

 

8 pensou em “Por fim, justiça para os Mau Mau.

  1. De forma didática trouxe o esclarecimento de um fato histórico, infelizmente desconhecido para muitos, assim como muitas atrocidades cometidas por países europeus durante o período de neo-colonização.

    • Infelizmente é uma história trágica.
      Mas cheguei a este texto através de um filme, cujo o nome é ´´ Uma lição de Vida´´ dirigido por Justin Chadwinck.
      Emocionante.

  2. Hoje assisti um filme chamado o aluno que descreve essa vergonhosa ação dos ingleses, logo após a segunda guerra mundial.

  3. Estou lendo ”Um Grão de Trigo” de Ngugi Wa Thiongo e as informações do blog ajudaram muito.

  4. Cá estou em 2017 lendo essa matéria para aprofundar meus conhecimentos na disciplina de História da África do século XX, é uma pena saber disso tudo apenas na faculdade, mas corrigirei essa falta quando estiver em sala de aula. Vergonha total para os países europeus envolvidos em sentido amplo com a exploração do Continente africano, muitos por ignorância tem a Europa como modelo de sociedade, só que não…

    • lá vem mais um maconheiro historiador se agarrar aos flagelos da sociedade naturais à colonização (que por si só já diz tudo) como bandeira contra o capitalismo…to até vendo…

  5. Assistir esse filme e estudar essa história de fatos cruéis é revoltante, e a Inglaterra aparece com a cara de Santa Poderosa. Não basta uma indenização, não basta um pedido de desculpas, a pena deveria ser muito mais severa, de maneira que o poder britânico sentisse na pele a dor, não só física, mas psicológica, histórica, humana, que as etnias, que o povo em geral sofreu. Esses ingleses não são gente, são monstros, com cara de bons moços. Dá nojo. E o pior é que hoje em pleno século XXI, ainda vivemos situações parecidas, não só na África, mas também no Brasil.Mas, apesar de tudo, ainda tem esperança, gente que acredita e prova a sua grandeza, com exemplos de vida. Isso pra mim, não pra ser herói, não vale a pena, porém para mostrar que o ser humano é capaz de mudar uma nação.

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