A revelação das diabruras da espionagem americana nas comunicações privadas da Europa deixou governos, políticos e povo enfurecidos.
A premier Merkel, embora também crítica, procurava moderar os protestos gerais.
Perdeu a calma quando descobriu que seu próprio celular estava grampeado.
Logo juntou-se a outros líderes europeus, exigindo que os EUA parassem de espionar seus amigos e aliados. Não era coisa que se fizesse!
Enquanto isso, comissão de legisladores europeus concluía leis, disciplinando a transferência dos dados dos computadores dos países da União Europeia para os EUA.
Elas tornarão essas operações muito mais difíceis para os grandes servidores de internet e provedores de mídia social americanos, pois terão de ser submetidas às leis da Europa e não às concessivas cortes secretas americanas.
Depois de emitir várias (e duras condenações), Merkel exigiu explicações de Obama, recebendo desculpas, promessas de emenda, nada muito satisfatório.
A grande surpresa foi que, dois dias depois, numa reunião de líderes da União Europeia, ela concordou em adiar para 2015 a aplicação das novas leis anti- espionagem.
Os chefes de governo europeus – com exceção da França, Polônia e Itália – foram nessa, apesar de contrariarem suas posições públicas e de seus respectivos povos.
Preferiram dobrar-se ao lobby pró-americano conduzido pelo governo inglês.
Até a próspera Alemanha, senhora dos cofres da recuperação europeia, cedeu. E não se trata de boato ou duvidosa informação anônima: o Der Spiegel, ao dar a notícia, citou documentos do Ministério do Exterior de Berlin.
Evidentemente a pressão inglesa favorece os EUA, mas prejudica a comunidade europeia, pois adia uma lei do maior interesse dos seus países, que, aliás, há 2 anos já teria sido aprovada não fosse a oposição americana.
O primeiro ministro do Reino Unido, David Cameron continuou prestando serviços à Casa Branca, ao ameaçar a “sacrossanta” liberdade de imprensa inglesa.
Em discurso na Câmara dos Comuns, ele censurou o jornal The Guardian pela publicação das denúncias da espionagem americana na Europa.
Disse Cameron: “Vivemos num país livre onde os jornais tem a liberdade de publicarem o que eles quiserem.”
Nem tanto, pois ele garantiu que, caso o The Guardian não se calasse, acabaria aplicando o D-Notices, que permite ao governo proibir matérias ameaçadoras da segurança nacional.
Como cabe ao governo dizer quando isso acontece, ele poderia simplesmente vetar notícias que o contrariem.
E lá se vai a liberdade de imprensa.
Para evitar um ato que seria uma tragédia numa democracia como a inglesa, o D-Notice só costuma ser aplicado somente em situações excepcionais. Numa guerra, por exemplo.
Segundo Cameron, o país vive um momento assim, sendo que as denúncias de espionagem já o tornaram “menos seguro.” Claro, não provou nada.
Na verdade o que essas denúncias prejudicam é a imagem dos EUA na União Europeia.
Do Reino Unido também pois recentes artigos mostram como os dois países monitoraram as comunicações dos seus bons amigos no Velho Continente.
Não é de hoje que o governo de Londres atua como um verdadeiro agente da Casa Branca, infiltrado na Comunidade Europeia.
Por pensar assim, o general de Gaulle, quando presidente da França, vetou duas vezes a integração do Reino Unido na chamada Comunidade Econômica Europeia (antecessora da Europa Unida).
Justificou-se, dizendo que permitir a entrada do Reino Unido seria o mesmo que permitir a entrada dos EUA e as consequências seriam “uma comunidade atlântica colossal, dependente e liderada pela América, que logo absorveria a comunidade europeia.”
Bem, esta fase ainda não chegou. Talvez mesmo nem chegue.
Mas meio caminho já foi percorrido.
Após de Gaulle, em muitos eventos, o Reino Unido aceitou a liderança yankee e influenciou outros países europeus nesse sentido.
Quando Bush resolveu invadir o Iraque, convocou Tony Blair para apoiá-lo numa guerra ilegal e injusta. E Blair, como primeiro-ministro do Reino Unido na época, topou co- patrocinar aquela farsa cruel, que tantas destruições e mortes causou aos iraquianos.
Até ajudou a convencer Aznar da Espanha, um dos 28 integrantes da Europa Unida, a aderir, contra a opinião do seu próprio povo.
Mais recentemente, o Reino Unido pressionou seus aliados europeus a suspenderem a proibição do envio de armas para a revolução da Síria, país que nunca ameaçou a Europa.
E, quando Obama quis bombardear Damasco, por ter o governo supostamente usado bombas químicas (sem haver provas disso), Cameron aprovou com entusiasmo.
E foi além.
Por sua ordem, o estado maior chegou a planejar a participação militar inglesa no ataque americano.
Felizmente o Parlamento cortou esse barato, pensando nos desejos do seu povo, não da Casa Branca.
Essa inversão de papéis, com o Reino Unido seguindo os EUA – sua ex- colônia- se intensificou durante o governo conservador de Margareth Thatcher. Mesmo com os dois trabalhistas que a sucederam no cargo de primeiro-ministro, não houve mudanças.
O que está mudando é a posição dos outros países da Europa diante da hegemonia americana.
Não digo que eles irão se desvincular totalmente, formar um bloco à parte.
Especialmente a partir do reconhecimento da Palestina pela ONU, quando seus países foram favoráveis ou neutros, contra a posição americana, a Europa Unida tem a divergido da Casa Branca em várias questões pontuais.
Nas negociações de paz na Palestina e na discussão dos acordos nucleares com o Irã, por exemplo, as posições europeias são claramente mais flexíveis do que as da Casa Branca, fortemente influenciadas por Telaviv.
Durante os longos anos da guerra fria, a Europa acostumou-se a ver nos EUA seu defensor diante da ameaça expansionista da União Soviética.
Esta confiança foi profundamente abalada, senão perdida, com o episódio da revelação da espionagem americana.
“Não é coisa de aliados e amigos”, disse Ângela Merkel.
Certamente, o dócil Reino Unido, do primeiro-ministro Cameron, estará a postos para tentar frustrar qualquer nova rebeldia dos europeus.
No entanto, não importa o que acontecer, nada mais será como antes.